Durante alguns anos fui voluntário do CVV - Centro de Valorização da Vida. Instituição com mais de 60 anos de existência e 40 milhões de atendimentos. O CVV presta serviço voluntário e gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio para todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo e anonimato. A instituição atende presencialmente (https://www.cvv.org.br/postos-de-atendimento/), por telefone (188), por e-mail (https://www.cvv.org.br/e-mail/) e por chat (https://www.cvv.org.br/chat/).
Os dados da OMS – Organização Mundial da Saúde são preocupantes:
Mais de 700 mil pessoas morrem por suicídio todos os anos. 1.918 suicídios por dia. Mais de 1 suicídio por minuto.
Para cada suicídio há muito mais pessoas que tentam suicídio. Uma tentativa de suicídio prévia é o fator de risco mais importante para o suicídio na população em geral.
O suicídio é a quarta principal causa de morte entre os adolescentes de 15 a 19 anos.
77% dos suicídios globais ocorrem em países de baixa e média renda.
No Brasil são cerca de 14.000 suicídios por ano. 39 suicídios por dia. Mais de 1 suicídio por hora.
A OMS reconhece o suicídio como prioridade de saúde pública. O primeiro Relatório Mundial de Prevenção ao Suicídio da OMS "Prevenção ao Suicídio: um imperativo global", publicado em 2014, tem como objetivo aumentar a conscientização sobre a importância da saúde pública das tentativas de suicídio e suicídio e tornar a prevenção do suicídio uma alta prioridade na agenda global de saúde pública. Também visa incentivar e apoiar os países a desenvolver ou fortalecer estratégias abrangentes de prevenção ao suicídio em uma abordagem multisetorial de saúde pública.
O suicídio é uma das condições prioritárias no Programa de Ação de Lacunas em Saúde Mental da OMS (MHGAP) lançado em 2008, que fornece orientação técnica baseada em evidências para ampliar a prestação de serviços e o cuidado em países para transtornos mentais, neurológicos e de uso de substâncias. No Plano de Ação em Saúde Mental da OMS 2013-2030, os Estados-Membros da OMS comprometeram-se a trabalhar para a meta global de reduzir a taxa de suicídio nos países em um terço até 2030.
Estigma e tabu
O estigma, particularmente em torno dos transtornos mentais e do suicídio, significa que muitas pessoas que pensam em tirar a própria vida ou que tentaram suicídio não estão procurando ajuda e, portanto, não estão recebendo a ajuda de que precisam. A prevenção do suicídio não tem sido adequadamente tratada devido à falta de conscientização sobre o suicídio como um grande problema de saúde pública e ao tabu em muitas sociedades para discuti-lo abertamente. Até o momento, apenas alguns países incluíram a prevenção do suicídio entre suas prioridades de saúde e apenas 38 países relatam ter uma estratégia nacional de prevenção ao suicídio. Conscientizar a comunidade e quebrar o tabu é importante para que os países façam progressos na prevenção do suicídio.
Imprensa
Outro problema de não tratarmos o suicídio como deveríamos – abertamente -, é a falta de divulgação. Há um acordo entre a imprensa e os órgãos do governo que cuidam do assunto em não divulgar os óbitos de correntes do suicídio. Alguns aspectos importantes para que isso ocorra:
Divulgar que fulano de tal cometeu suicídio não vende jornal, como se diz. O que vende, é a forma como o fulano cometeu o suicídio: enforcado, envenenado, com tiro na cabeça e assim por diante. Por causa disso, você quase não vê notícias sobre os suicídios no Brasil, mesmo tendo 1 suicídio por hora. Sem notícias, não há debate, sem o debate não se evolui;
O modelo mental governamental sobre o suicídio é arcaico. O CVV, que existe a 60 anos e já fez mais de 40 milhões de atendimentos, não recebe um centavo do governo e se mantém com dinheiro dos voluntários e da sociedade. O governo não dá dinheiro, que poderia ajudar aumentar os atendimentos, em função de querer saber se o atendimento deu certo ou não. Na verdade, o governo quer que o CVV faça um cadastro com nome, CPF etc., das pessoas que procuraram a instituição. O governo esquece que os atendimentos são anônimos e confidenciais, e que nenhum registro de dados das pessoas é feito;
Durante os anos que trabalhei como voluntário no CVV (aliás, a melhor coisa que fiz na vida), pude perceber que, pelo menos para mim, a maioria das pessoas que nos procuravam se sentiam solitárias. Elas queriam tirar a própria vida pela dor da solidão. Em grande parte das vezes, essa solidão era com “casa cheia”, ou seja, o sentimento de solidão surgia mesmo acompanhado de outras pessoas, que não percebiam isso. A solidão fazia germinar a angústia que trazia no seu bojo a vontade de que isso parasse de vez. O caminho que as pessoas encontravam para acabar com essa dor é a morte-de-si.
Essa ligação que eu recebia, as vezes a última por falta de perspectiva, as vezes o início de uma nova vida, em todos os momentos procurávamos: sentir a dor do outro como se fosse a nossa. Não era empatia. Era alteridade, muito mais que empatia. Sentir e pensar nas coisas que estávamos ouvindo e, agir em relação a nossa fala com a pessoa.
Nós podíamos tudo quando falávamos com o outro, menos: aconselhar, investigar e julgar. Não podíamos aconselhar pois, com muita humildade, sabemos que não somos nada nesse mundo. Apenas mais um ser humano. Não podíamos investigar quem era pessoa que estava nos ligando e nem os seus motivos pois, o resultado da investigação não mudaria nosso sentimento de ajudar o outro. A investigação só tomaria tempo. Não poderíamos julgar pois, qualquer que fosse o julgamento ele seria falso e não ajudaria em nada. Emitir juízo de valor nesse momento é ter a presunção de que sabemos a resposta sobre a vida em si. O que nos sobrava era ouvir com uma escuta ativa e com o coração nos ouvidos.
Carl Roger (1902-1987) psicólogo americano dizia: “Se posso proporcionar um certo tipo de relação, o outro descobrirá dentro de si mesmo a capacidade de utilizar aquela relação para crescer, e mudança e desenvolvimento pessoal ocorrerão”.
É nisso que acreditávamos para manter a pessoa na linha falando com a gente como se estivesse falando com seu melhor amigo/amiga. Ao aceitar o outro dentro da sua condição atual, desenvolvíamos uma relação de alteridade e consideração positiva. Entendemos que os seres humanos necessitam de aceitação, e quando esta lhes é dada, movem-se em direção à autorrealização que são as condições necessárias e suficientes para o crescimento humano.
Não sei quantas vidas eu ajudei a salvar, ou quantas vidas eu perdi. Não fazíamos esse cálculo. A única coisa que sei é que me dediquei com toda a minha energia, alteridade em cada atendimento que fiz. Chorei, ri e refleti em cada ligação. Fui fundo na minha alma para tocar a alma do outro. Tenho certeza de que foi o melhor trabalho da minha vida. Um trabalho acima de tudo ético. Se você puder, experimente!
Comments